lunes, julio 31, 2006


CANCIÓN JÓNICA

Aunque hayamos destruido sus estatuas,
aunque los hayamos sacado de sus templos,
los dioses no han muerto por ello, en absoluto.
Oh tierra jónica, es a ti a quien ellos aún aman,
es a ti a quien sus almas aún recuerdan.
Cuando la mañana de agosto se alza sobre ti
un vigor de su vida se mueve a través de tu aire;
y de vez en cuando una figura de juventud etérea,
indistinta, con paso rápido,
cruza por sobre tus cerros.

Constandinos Cavafis

martes, julio 25, 2006

Cidade

A José Ángel García Caballero, que habitará Lisboa y buscará a Fernando y a Sophia...

CIDADE

Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,
Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,
Saber que existe o mar e as praias nuas,
Montanhas sem nome e planícies mais vastas
Que o mais vasto desejo,
E eu estou em ti fechada e apenas vejo
Os muros e as paredes, e não vejo
Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.
Saber que tomas em ti a minha vida
E que arrastas pela sombra das paredes
A minha alma que fora prometida
Às ondas brancas e às florestas verdes.

Sophia de Mello

domingo, julio 23, 2006

"Lunar" de José Luís Peixoto

O brilho nas pedras do passeio. Pontos de luz tremem sobre a água fina
que a noite, a chuva, deixou sobre as pedras. Eu caminho sobre a organização
das pedras do passeio. Diante de mim, um manto de pontos de luz que se
acendem e que se apagam. A sua vida é breve. A minha vida é breve. São
pontos de luz que abrem caminhos para que avance. As minhas botas pousam
entre esses pontos de luz a nascerem, a viverem durante um instante e a
morrerem para sempre. Mil pontos de luz a morrerem em instantes
diferentes, em sítios diferentes, ignorando-se e fazendo parte da mesma
ordem. Pelos muros do jardim, escorre uma camada fina de água, pele
cristalina de cálice, água límpida como veneno. A repousar no topo do muro,
a escorrer como uma avalanche suspensa, há plantas, folhas, ramos de árvores:
braços verdes que pararam no momento em que se lançavam para agarrar
alguém que, como eu, caminhava no passeio. Também na pele vertical do
muro, também nas folhas, há pontos de luz que existem delicadamente.
Como em olhos sinceros a brilhar. Mãos cheias de pó a brilhar lançadas sobre
as pedras do passeio, sobre o muro do jardim e sobre os ramos que se atiram
do seu topo.
Uma brisa ergue-se do interior da terra e chega a mim, à consciência de
mim: o meu rosto, os meus lábios, o meu corpo tocado por essa brisa.
Caminho por entre essa brisa a passar por mim, como se atravessasse uma
multidão invisível. A brisa, ao tocar os meus olhos, transforma-se em
lágrimas que descem frias pelo meu rosto. Os meus lábios. Sinto-as e sinto a
memória das vezes que chorei o desespero parado, mais triste, de lágrimas
que descem lentamente pelo rosto. O tempo passa por mim como qualquer
coisa que passa por mim sem que a consiga imaginar e as lágrimas, que eram
apenas a brisa a tocar os meus olhos, começam a ser lágrimas de desespero
verdadeiro. Páro no passeio. O mundo pára. E lembro-me de ti como uma
faca, uma faca profunda, a lâmina infinita de uma faca espetada infinitamente
em mim. Não passou muito tempo desde que a manhã nasceu. Passou muito
tempo desde que me deixaste sozinho entre as sombras que se confundiam
com a noite. Noutras noites, olhámos para a lua. Nesta noite, não olhámos
para a lua. Noutras noites, olhámos para a lua e enchemo-nos de desejos.
Nesta noite, não olhámos para a lua e sofremos. Noutras noites, olhámos
para a lua e não sabíamos o que era sofrer. Escuridão e esperança. Na lua,
víamos mais do que o reflexo daquilo que queríamos inventar: os nossos
sonhos. Víamos um futuro que era maior do que os nossos sonhos e que nos
envolvia e que nos puxava para dentro de si. Nós sabíamos que nos esperava
algo muito maior do que aquilo com que podíamos sonhar. Estávamos
enganados. Aqui, sobre estas pedras que brilham, sob estas lágrimas no meu
rosto, sei que nos enganámos e sei a lâmina infinita de uma faca.
Lá no sul, onde nasci: o meu corpo dentro do corpo da minha mãe, sob
a sua pele, encostado aos seus ossos; lá no sul, existem casas caiadas, existem
campos, existem planícies que estão agora tão longe de mim e que, ao mesmo
tempo, estão aqui porque são a memória de algo que sei que existe. Dentro
dessa memória, na primeira vez que a lua se encheu e brilhou perfeita depois
de eu nascer, a minha mãe esperou o momento em que todas as pessoas da
casa adormeceram. Pousou sobre a mesa da cozinha o xaile com que me
envolvia e abriu portas até descer os degraus do quintal. Tinha os pés
descalços sobre a terra. Eram os últimos dias do verão. No centro do céu da
noite, a lua tinha parado na explosão da sua luz branca e gelada. Os dedos da
minha mãe eram grossos no momento em que, com ambas as mãos me
levantou no ar, sobre a sua cabeça, na direcção da lua e disse: Ò lua, ò luar,/ eu
fi-lo nascer/ ajuda-mo tu a criar. Eu era pequeno e branco. Nos olhos da
minha mãe via-se os seus braços erguidos, via-se o meu corpo dentro do
círculo branco da lua.
Nesta noite, antes e depois de nos separarmos, era essa mesma lua que
existia no céu. Como a minha mãe, essa lua existia num lugar onde não a
tentámos ver, mas sei agora que existia e saber isso é saber que o mundo é tão
vasto. Agora, neste momento, não sei onde estás. Imagino-te a fazer tantas
coisas. Imagino-te a não te lembrares de mim. Agora, longe daqui, existe a
terra do sul onde nasci. Estou parado e sei que vou recomeçar a caminhar.
Não passou muito tempo desde que a manhã nasceu. Olho para as minhas
botas e vejo uma altura de nevoeiro que começa a levantar-se do chão e a
envolver-me lentamente os joelhos. Os pontos de luz que brilham no chão
são mais vagos. E uma voz terrível e negra começa a atravessar-me. Não
distingo as palavras que diz através de mim. Lentamente, levanto o olhar ao
céu. Sobre mim, existe um lugar infinito e maior do que eu. Sobre mim, o céu
desta manhã é o espaço infinito onde pode existir tudo aquilo que existe no
meu peito. Como a sombra pálida do meu coração, distingo no céu desta
manhã, no céu luminoso e baço do meu peito, a forma branca da lua. O dia
nasceu sobre a noite e a noite continuou sob a luz cinzenta desta manhã. A
noite feita com formas de fumo e de nevoeiro. Quando ainda era mesmo de
noite e estavas ao meu lado, disseste: não podemos ser felizes. Eu desejava-te
tanto. Eu via os teus olhos através do ar da noite, sabia que estavas a meu lado
e sabia que nos íamos separar. Vi-te partir. Os teus passos a afastarem-te de
mim. Eu estava parado perante o horror, o medo. Tu afastavas-te de mim.
Entravas em casa, como se saísses para sempre de mim. Saías para sempre de
mim. O momento em que fechaste a porta: eu soterrado por todo o negro,
todo o veneno negro. Uma faca infinita. Eu a perceber que ficarás para
sempre fechada dentro dessa casa. Nunca, nunca mais poderás sair. A noite, a
rodear-me, era o lugar negro onde existiam certezas terríveis: a morte, a
morte de tudo. Entre as paredes das casas, a tua casa. Os vidros das tuas
janelas fechadas refectiam a escuridão do mundo. Os meus olhos
derramavam escuridão sobre o mundo. Estavas ainda perto de mim, olhava
para o lugar onde sabia que estavas, a casa que te continha e, no entanto,
aquela casa era um lugar escuro, um poço, era como se tivesses mergulhado
dentro da imensidão negra que existe dentro de cada um de nós. Eu sabia que
nunca mais te voltaria a ver. Eu desejava-te ainda. Agora, desejo-te ainda. Sei
que existem cemitérios. Sei que a casa onde estás, o lugar onde te imagino a
fazer tantas coisas, a não te lembrares de mim, é um lugar de destroços.
Vivemos rodeados de cemitérios. Aquilo que fomos está enterrado à nossa
volta e nunca poderemos saber onde deixámos tudo aquilo que não
voltaremos a ver. No céu, a lua é a mesma que existia quando, deixando-te,
caminhei pelas ruas desertas. Os meus passos na noite. Os meus passos e,
lentamente, o dia a nascer sobre as coisas da noite. Lentamente, a noite fixa
no seu lugar, nos objectos, nas casas, no céu, e o dia a envolvê-la como uma
capa de luz cinzenta. Esta manhã lunar. Esta manhã que é uma manhã e que é
ainda a noite. A lua neste céu branco. Pouso as pálpebras sobre os olhos.
Vapor, nevoeiro. Os teus olhos eram um caminho. Os teus cabelos eram
talvez um horizonte. Não sei como acreditámos que as palavras eram simples.
Sonhávamos e enganámo-nos. Sorrindo, mergulhávamos os lábios no veneno
quando pensámos que bebíamos o antídoto.
Abro os olhos e a manhã é igual. O nevoeiro fresco na minha pele. No
céu, esta lua branca e gelada: padrões de gelo, formas moldadas de gelo. No
céu, a imagem da eternidade. Desço o olhar e, à minha frente, as casas
fechadas, as ruas desertas e reais. Existe qualquer coisa fria na realidade desta
manhã. A cobrir as minhas pernas, o nevoeiro. A atravessar-me, uma voz.
Distingo as palavras que diz através de mim: não podemos ser felizes. Sou
atravessado por essas palavras como sou atravessado pelo nevoeiro.
Recomeço a caminhar. Os meus passos são eu e eu sou esta manhã lunar.
Caminho como se estivesse a ser, de novo, oferecido à lua pelos braços da
minha mãe. Quando era criança, temia a morte. Agora, envelheço tanto.
Temo a morte mas sei que, se tentar fugir-lhe, estarei a correr na sua
direcção. Caminho sobre as pedras do passeio. Ouço os meus passos debaixo
do nevoeiro. Fujo da morte porque quero correr na sua direcção.
A memória como uma maldição. Caímos na eternidade e a memória é
um peso, continua a prender-nos em qualquer ponto para onde nunca
poderemos voltar. Ò lua, ò luar,/ eu fi-lo nascer/ ajuda-mo tu a criar. A
memória é como a esperança da minha mãe na noite em que me ergueu à lua
e, sem saber, escolheu-me um destino. Lembro-me de quando nos
conhecemos e esse dia está debaixo do teu olhar e desta noite. Lembro-me da
minha mão pousada sobre a tua e esse instante está debaixo da palavra
solidão. Lembro-me de tantas coisas impossíveis. Agora, caminho por esta
manhã deserta. As pedras do passeio existem debaixo dos meus passos.
Ninguém, nem sequer eu próprio, me pergunta para onde vou. Nas ruas
desertas, sou uma multidão de gente mutilada a caminhar. Sou aquele que,
esta noite, te viu partir, que olhou para ti quando os teus olhos se despediram
e que não pôde fazer nada senão olhar para ti, o corpo que foi meu, e vê-lo
afastar-se, cada vez mais longe dos meus braços. Sou aquele que nasceu lá no
sul, longe de toda as desilusões, no lugar onde o passado pára, no último lugar
do passado. Sou aquele que sonhou com tudo aquilo que é proibido sonhar.
Sou aquele que é todos estes e muito mais do que estes e que caminha por um
passeio deserto, o nevoeiro, o brilho morrente da luz na água fina da chuva,
sob um céu cinzento, sob a lua como um ponto para onde tudo se dirige.
Caminho nesta manhã como se entrasse dentro de uma casa vazia, a casa que
conheci, que foi minha e que abandonei, como se subisse as escadas dessa casa
de salas mortas, cadeiras mortas, camas mortas, como se me aproximasse da
janela e olhasse lá para fora, como se uma voz negra e terrível me atravessasse.
A manhã é ainda lunar.
Nunca mais poderei deixar o meu corpo esquecido junto ao teu. O
mundo que não existia longe da tua pele. Os meus dedos a deslizarem pela
superfície da tua pele. E o desejo enganava-nos. Os meus dedos entre os teus
cabelos e a inocência. A claridade dos dias que nasciam na tua pele branca, na
forma suave da tua pele feita de silêncio. A inocência repetida em cada
palavra da tua voz, como água de uma fonte, como a minha mão a atravessar o
ar e a dirigir-se para o teu rosto. O teu olhar era a inocência. O meu olhar. E
o silêncio de cada vez que queríamos falar de assuntos mais impossíveis do
que a memória. Nunca mais poderei sonhar porque tu não estarás ao meu
lado e, descobri hoje, só posso sonhar contigo ao meu lado. Espetada
infinitamente em mim, uma faca infinita. Deixei de imaginar o futuro. Sobre
esse tempo que não sei se chegará existe um manto muito mais negro do que
aquele que cobre o passado. Não consigo olhar através desse tempo negro. O
futuro estará depois de muitas noites, mas eu deixei de imaginar as noites. Sei
que, da mesma maneira que esta noite se cobriu de manhã, esta manhã
poderá anoitecer. Consigo imaginar cada tom das suas cores a tornarem-se
negras. Não consigo imaginar este tempo a transformar-se noutro tempo.
Contigo, perdi tudo o que fui para não ser mais nada. Deixei-me ficar nos
sonhos que tivémos. Abandonei-me. Nunca mais entenderemos a lua como
quando acreditávamos que aquela luz que atravessava a noite nos aquecia.
Nunca mais. Nunca mais poderemos sonhar. Nunca mais.
O brilho nas pedras do passeio. Dentro do nevoeiro, há pontos de luz
mais grossos a brilharem. Moedas lançadas para um lago cheio de desejos.
Caminho entre o brilho. Os meus passos afastam-me de nada. Existem veios
de medo na brisa que atravesso. Linhas de medo que me tocam a pele.
Atravesso a brisa e sou atravessado por uma voz que me diz: não podemos ser
felizes. O medo. Sobre mim, o céu é o tempo do mundo. Todo o tempo de
todas as pessoas do mundo. O céu é nunca mais. A lua somos nós, aquilo que
fomos. Como a memória, a lua existe nesta manhã para nos lembrar que
existiram noites, que existiu esta noite em que nos separámos. Caminho
sobre a organização das pedras do passeio, a organização do nevoeiro.
Rodeada pelo tempo do mundo, por nunca mais, a lua somos nós.


José Luís Peixoto ( Ponte de Sor, 1974)

lunes, julio 10, 2006

Giannis Kounellis (Atenas, 1936)

MELANCOLÍA REVOLUCIONARIA

¿Cómo mantener la vida, la fuerza poética, del arte en un mundo en el que la repetición obsesiva, agobiante, de signos y representaciones ha terminado por arrebatarle su potencia inmediata, su capacidad de impacto?
La trayectoria entera de Jannis Kounellis es un intento persistente de dar respuesta a ese interrogante. Un intento en el que la memoria de la civilización, el recuerdo atesorado de la cultura mediterránea clásica, se proyecta en el arco de la utopía.
En el compromiso radical, poético y político, del artista, en una época caracterizada por el conformismo y la resignación.
La incitación artística se sitúa en un juego de presencias no ostensibles. En el mundo de la redundancia de la representación, Kounellis activa huellas: rastros, índices, indicios... de dimensiones no evidentes, pero intensamente significativas. En lugar de la representación explícita, la sugerencia del inevitable tránsito de las cosas. Cambio, metamorfosis, desaparición.
¿Cómo activar el apagado espíritu de nuestra época? La interrogación de Kounellis bucea en lo originario: los materiales del arte, en su radicalidad, han de ir hoy más allá de los géneros artísticos tradicionales.
¿Cómo elaborar un cuadro, dar forma a una estatua, en un mundo donde el lenguaje plástico ha perdido irremisiblemente su estabilidad expresiva?
El artista se convierte en un rastreador, en un arqueólogo de la experiencia vital de una civilización que hoy parece abandonada en las cenizas del olvido.
En ese rastreo, el primer registro es el de los materiales. Ahí se sitúa ya todo un campo de resonancias del eje estético primordial en la obra de Jannis Kounellis: el contraste naturaleza/cultura.
El mundo que habitamos no sólo ha hecho inviable, no operativo, el lenguaje tradicional del arte, sino que además ha colonizado de forma tan exhaustiva lo natural que lo ha hecho desaparecer casi por completo. O, a lo sumo, lo guarda y mantiene en zonas confinadas.
Se trata de un proceso que se remonta a los inicios de la modernidad. Y que fue ya tomado en consideración, en clave estética, por Friedrich Schiller en el paso de la Ilustración al Romanticismo.
En su ensayo Sobre la poesía ingenua y sentimental (1794-1795), Schiller escribió "hoy la naturaleza ha desaparecido de nuestra humanidad, y sólo fuera de ella, en el reino de lo inerte, volvemos a encontrarla en su pureza."
Una vez perdida, para volver a la naturaleza no hay vía directa, nos es necesario el rodeo a través de la cultura. Y es eso lo que marca la diferencia entre los antiguos (los griegos) y los modernos: "Ellos sentían naturalmente; nosotros sentimos lo natural".
De ahí el anhelo, la intensa melancolía, que despierta en nosotros "lo natural", cuyos signos o imágenes se convierten en puntos de referencia centrales para poetas y artistas. Con ellos, a través de sus obras en las que se cifra lo más vivo de la cultura humana, el hombre puede volver a la naturaleza.
Creo, no obstante, que para entender plenamente las resonancias de "lo natural" en la obra de Jannis Kounellis es preciso unir a la melancolía romántica el proyecto de emancipación política, revolucionaria, que tiene su inicio con Karl Marx.
Me refiero, en particular, a los Manuscritos económico-filosóficos (1844), en los que Marx destaca cómo a través de la técnica moderna, de la industria, la naturaleza se ha introducido de forma práctica en la vida humana, transformándola en profundidad y preparando el camino de la emancipación.
En consecuencia, según Marx, "la industria es la relación histórica real de la naturaleza (y, por ello, de la ciencia natural) con el hombre". Es eso lo que permite la perspectiva de una futura unficación de la ciencia natural con la ciencia del hombre. Ya que, en último término, "la historia misma es una parte real de la historia natural, de la conversión de la naturaleza en hombre."
En Kounellis, lo natural aparece siempre no como un registro ideal, sino sometido a la manipulación del hombre. Las piezas de carne dejan la huella de sangre sobre los paneles de hierro: la naturaleza destinada a servir de alimento al hombre, industrialmente "digerida" por la cultura.
Kounellis contrapone los materiales "naturales", orgánicos o inorgánicos, a los artificiales. Y así, en lugar del dibujo o el color, el mármol o el bronce, actúa con elementos dados (naturales) y otros ya hechos (artificiales).
El cuerpo de la mujer, caballos, ratas, cuervos, escarabajos, un loro: todo un conjunto de seres vivos. Pero también la carne animal, las maderas, las hojas de árbol, las piedras, el humo. Y junto a ello, hierro, cera, plomo, yeso, alquitrán, carbón, velas, bombonas de gas, lámparas, antorchas-flechas, máquinas de coser, lana, sacos, repisas, zapatos, abrigos, armarios, arcos, paneles, ventanas y puertas.
Esta somera enumeración de elementos recurrentes nos permite iluminar todo un juego de sentidos: la referencia continua, envolvente, en una larga serie de obras y propuestas, es la presencia ausente del ser humano.
El "rastro" del hombre, las huellas de su vida en la tierra, el signo que imprime sobre todo lo que manipula, fabrica o utiliza. Elementos para vivir: comer, resguardarse, habitar, comunicar, viajar... La disposición de elementos no es, sin embargo, un mero registro taxonómico.
La tarea arqueológica de Kounellis presenta, a la vez, un fuerte giro dramático, escénico. No es extraño, entonces, encontrar en ese año de 1968, tan importante en Occidente para la aparición de un nuevo horizonte de lo político, un texto de Kounellis que es una auténtica poética del teatro.
Un escrito que gira en torno a las categorías de "lo vivo" y "lo verdadero" y que, con ecos que hacen pensar en Antonin Artaud, nos habla de "lo 'natural'" y de "lo 'vivo' como autenticidad teatral".
Escribe allí Kounellis: "Se puede y se debe recomenzar a partir del propio cuerpo, tanto en lo que se refiere al actor como al espectador (lo mismo en el escenario que en la vida)." ["Pensamientos y observaciones", 1968].
En las obras de Kounellis, la disposición de los elementos es escénica: sobre ella gravita el rastro del cuerpo ausente. Y así se desencadena la implicación del espectador, a partir de su inmersión corporal y perceptiva, en la que no sólo opera lo visual, sino los cinco sentidos básicos. Los sonidos, el olor y el tacto desempeñan en sus trabajos un papel tan importante como las formas que los vehiculan.
En un segundo escalón, los sentidos despiertan asociaciones y recuerdos. Y se abre entonces el salto del sentido poético, en el que la biografía del espectador se funde con la del artista, y a través de ello con la historia de la cultura compartida.
En cualquier caso, el dispositivo escénico no supone el escamoteo del cuerpo del propio Kounellis. El artista se hace presente, a la vez, como actor y como acompañante en un juego estético que alude y reivindica el trasfondo ritual del arte.
Toda una serie de obras, en las que el vehículo es la fotografía, desvelan ese papel del creador como actor y psicopompo, acompañante en el ritual.
Jannis Kounellis: sobre la cubierta de una barcaza navegando en el mar (1969), con los labios recubiertos con un molde de oro (1972), sosteniendo en la boca un fuego encendido de gas propano (1973), con una máscara de yeso, ante una mesa en la que se disponen fragmentos de vaciado en yeso y un cuervo disecado (1973), en un collage en el que la mitad de su rostro se une a un montón de piedras fragmentariamente pintadas (1985), su pie desnudo apoyado sobre una vieja máquina de coser (1989), sosteniendo en sus labios una plancha de hierro con una vela encendida (1989), o en el cartel en el que su brazo sostiene una lámpara ante la imagen de las tareas de carga y descarga de un barco (1989).
Hay aspectos muy importantes en esa serie de imágenes del artista. En primer lugar, la utilización de la fotografía, que refuerza el carácter de índice en el mostrarse a sí mismo. Las ausencias de la mayoría de sus piezas tienen aquí el contrapeso de la presencia explícita del hombre que las creó.
Pero, en segundo lugar, lo habitual en esas fotos es la presentación fragmentaria de su cuerpo. A excepción de su figura lejana en la barcaza (1969), en el resto de los trabajos mencionados lo que se ofrece a la visión es siempre una parte o fragmento corporal.
Lo ostensible del mostrarse se determina con una presentación metonímica: se presenta o destaca una parte del cuerpo. No creo que se trate de algo accidental. Al contrario, lo considero muy signficativo para poder entender el tipo de construcción estética que intenta Kounellis.
Sabemos, y el psiconálisis ha insistido en ello, que nuestra visión de los cuerpos de los otros es siempre parcial, fragmentaria: la pulsión escópica aisla planos del cuerpo del otro, que son los que constituyen el punto de anclaje del deseo.
Y sabemos, también, que la disolución del clasicismo implica el estallido de la obra de arte orgánica, su explosión en fragmentos. El artista se muestra a sí mismo, como signo de su entrega, de su ofrenda corporal en el proceso de la obra. Pero el signo de esa presencia, en la época post-clásica, no puede ser ya el de la presencia rotunda y completa de las figuras clásicas, sino el signo de la fragmentación.
Una vez más, el rastro, la huella, aunque aquí a través de la intensificación expresiva de la metonimia, en la que una parte vale por el todo. Un todo ya inexistente o inaccesible en nuestro universo de representaciones estéticas.
Podemos también, ahora, apreciar la importancia metodológica y expresiva del collage en las propuestas estéticas de Kounellis. En realidad, el contraste naturaleza/cultura que aparece recurrentemente en sus piezas no se presenta nunca como "totalidad" expresiva, sino como collage.
El planteamiento de Kounellis evita la recaída en el idealismo, la fabulación de una unidad de la naturaleza y la cultura construida sobre "el espíritu" o la idea. Por el contrario, lo que aparece en sus piezas son partes materiales del mundo, fragmentos de la tierra habitada por el hombre.
Los materiales orgánicos e inorgánicos, lo caliente y lo frío, lo luminoso y lo oscuro, los objetos y las huellas, se articulan y confrontan no como piezas de un engranaje, sino como fragmentos "pegados" en la visión.
Una visión que, lo mismo que la memoria, rescata partes y motivos, selectiva y accidentalmente, y los mezcla en un registro abierto, expansivo.
Lo que a primera vista puede parecer accidental, está en realidad revestido de una fuerte determinación expresiva. El fragmento de madera es, a la vez, la parte vertical de una cruz, con lo que se alude, en un intenso registro polisémico, tanto a los materiales de la naturaleza como a la truncada historia espiritual de nuestra civilización.
El fragmento de la cruz, el cristianismo roto, es también un índice de la ausencia de espiritualidad de nuestro mundo. Una constatación ésta omnipresente en todo el trabajo de Kounellis, en el que continuamente percibimos la decidida voluntad de hacer patente que una cosa es lo laico y otra la ausencia de espiritualidad.
Las flores de hierro, las balanzas con polvo de café, las ánforas con agua de mar o sangre, las bombonas de gas que se prolongan en los tubos extendidos como reptiles, en el suelo o en el aire, no son "meras" paradojas expresivas: articulan lo plástico y lo alimenticio.
Muestran que en los más simples elementos materiales el hombre deposita un signo de elevación, una marca espiritual. En definitiva, Kounellis realiza de forma recurrente una reivindicación del carácter espiritual del trabajo humano que, más allá de toda mixtificación idealista, abre el camino para la comprensión de la espiritualidad latente en el mundo material, en la tierra que habitamos.
El fuego y el hierro establecen un nexo, una conjunción de lo primordial, de la que brota la luz, probablemente el material plástico decisivo, aunque con frecuencia inadvertido, en todo el trabajo de Kounellis.
En todas sus piezas, la luz articula el sentido dramático de los materiales y fragmentos. La luz, que brota de lo más profundo de la tierra. Que nos acompaña e ilumina en lo que, si no, sería un mundo de penumbras. La luz, que desde el material más humilde y diminuto del mundo, gravitando en nuestra retina, nos permite volar hacia lo alto, aspirar a la espiritualidad.
En virtud de todo ello, las obras de Kounellis rompen los límites expresivos tradicionales. No pertenecen ni a "la pintura", ni a "la escultura". Pero se nutren de ambas, de su memoria, y se funden en un proceso plástico de organización dramática, teatral, del espacio.
El resultado es un registro "envolvente", en el que, a través de los fragmentos y las piezas, signos de la humanidad, somos capaces de sentir y experimentar las grandes cuestiones de nuestra civilización: la vida, el cambio, la decadencia, la muerte, la desaparición...
El artista no engaña. En ese bucear arqueológico de Kounellis no hay lugar para el ornamento o el esteticismo. En esta época de olvido y abandonos "lo bonito", lo aparente y superficialmente "bello", es una iniquidad. Una impostura moral.
El registro estético de Kounellis es expresión de una rabia contenida, de una actitud rebelde e inconformista, que no acepta que la contienda por la configuración humana de la vida, del mundo, haya terminado irremisiblemente en la derrota.
En ese punto se sitúa el carácter intensamente melancólico de toda su obra, que el propio Kounellis ha hecho explícito al hablar de "la melancolía como propuesta" [1985]. La plenitud estética no puede presentarse como algo banalmente al alcance, so pena de caer en el encubrimiento de la opresión. La Arcadia está fuera de nuestro alcance y el arte ha de hacerlo explícito en sus propuestas: "Mis lanas, que reflejan la Arcadia perdida de vista y fuera del tiempo, se pueden adquirir, según me informan, con 150.000 latas de cerveza." ["Si la casa es cuadrada...", 1988].
Y sin embargo, aun a riesgo de que esa invocación de lo arcádico pueda ser traducida en una cantidad, comprarse, sigue siendo necesaria como compromiso del arte con la búsqueda humana de felicidad, de plenitud.
La memoria y la melancolía actúan entonces como desencadenantes de la utopía, como revulsivos para la no aceptación del estado de cosas existente. El pasado y las imágenes entrevistas de un tiempo de plenitud nos dicen que el mundo no está aún terminado.
La reivindicación de Ítaca: "Ítaca, visionaria Ítaca", la patria del retorno de Ulises pero también la imagen de lo que siempre está más allá, es en Kounellis la afirmación del espíritu de la utopía: "Así pues, contra viento, hacia el puerto donde se refugian las armonías y los paraísos, aun sabiendo que ese destino justo y deseado está muy lejos." ["Si la casa es cuadrada...", 1988].
El mar y la navegación, espacios de vida y simbolización primordiales de la cultura clásica, de las antiguas civilizaciones mediterráneas, descubren así su papel esencial en todo el universo estético de Kounellis. La vida como navegación incierta, zozobrante a veces, pero llena de determinación, hacia las islas de la felicidad.
Obviamente, pocos pensadores pueden estar más cercanos de las propuestas estéticas de Kounellis que Ernst Bloch, el gran pensador de la utopía. Pero además de la coincidencia con los principios y formulaciones centrales de la filosofía de Bloch, lo que ha llamado mi atención es su cercanía en la utilización de algunas imágenes y procedimientos expresivos, centrales para ambos.
En 1930, Ernst Bloch publicó Spuren (Huellas), un libro inclasificable, de prosa no argumentativa ni lineal, en el que a través de relatos y fábulas articulados en una especie de collage narrativo, se presenta una filosofía no ostensible, no declarativa.
Lo que Bloch muestra es el despliegue literario de un interrogante filosófico: ¿se agota el mundo de la apariencia en sí mismo, o encontramos en sus pliegues "algo" que desde dentro mismo lo desborda?
Las historias de Spuren, que conservan un sabor oral, ancestral, como provenientes de la memoria más profunda, presentan a través de un juego de presencias y ausencias, el rastro, las huellas, de ese "algo" que desborda el mundo de las apariencias y que constituye el núcleo de la autotrascendencia humana, la imagen de la utopía.
Como en Kounellis, en los relatos de Bloch hay dos imágenes que revisten gran importancia: la ventana (particularmente, la ventana roja) y la puerta.
Jannis Kounellis ha escrito: "Si la ventana enmarca un paisaje, el visionario acentúa su significado mientras dura la visión." ["Si la casa es cuadrada...", 1988].
El texto "La ventana roja" en Spuren, de Bloch, tiene el valor de un signo que se fija en la adolescencia, en ese período en que se consolida definitivamente el "yo" del sujeto.
Es una impronta que, sin brotar de un plano concreto de la experiencia: la casa, la naturaleza, o el yo, remite sin embargo al todo: "Cada uno guarda de esta época un signo, que no tiene absolutamente nada que ver con la casa, ni con la naturaleza, ni con el yo conocido, pero que, si así se quiere, lo cubre todo."
"Con la ventana como una máscara", concluye Bloch, salimos "hacia la libertad". La ventana marca un dentro y un fuera de nosotros mismos, pero marca así ante todo el paso hacia fuera, la experiencia de la libertad. A través de ella, el mundo se presenta como un territorio de disponibilidad abierta para el hombre.
Otra de las imágenes de gran densidad en Spuren es la puerta, lo que Bloch llama "el símbolo originario letal de la Puerta". Desde que alguien franquea una puerta, se le deja de ver. Desaparece de golpe, como si muriera, lo mismo que el tren desaparece tras la curva.
Este intenso motivo muestra su conexión con la actividad artística en los relatos chinos, recordados por Bloch, que entremezclan la puerta que conduce a la obra y la que conduce a la muerte.
En uno de ellos, un viejo pintor muestra su último cuadro a sus amigos. Pero cuando estos, al ver un rojo extraño en la pintura, se vuelven hacia el pintor, no le encuentran ya junto a ellos, sino en la imagen, avanzando por el también extraño sendero que aparece en el cuadro hacia la puerta maravillosa, ante la que se detiene, se vuelve, sonríe, la abre... y desaparece.
La puerta. El signo no sólo de lo que cierra, sino de lo que abre el límite de lo que nuestros ojos no ven, pero nuestro corazón anhela, presiente.
¿Por qué desde "aquí", desde el mundo de las apariencias, desde las dificultades, el sufrimiento y el dolor, nos encaminamos hacia ella? En las palabras conclusivas de Ernst Bloch: "la tierra inhabitable, con algunos símbolos de la felicidad, es una buena escuela preparatoria para los sueños reales detrás de la puerta."
Ventanas y puertas. Signos, imágenes, de la presencia humana, rastros del paso del hombre en la tierra. Y, por ello, símbolos de la posibilidad humana de ver a través y de traspasar los límites. Imágenes de la utopía.
Ventanas y puertas omnipresentes en la obra de Jannis Kounellis. Quien ha escrito: "Si la puerta tiene una dimensión humana es porque el hombre la atraviesa." ["Si la casa es cuadrada...", 1988].

Extraído del catálogo de la exposición de 1996 en el Museo Reina Sofía de Madrid.


Giannis Kounellis: "Sin título"





Giannis Kounellis: "Sin título"




Giannis Kounellis: "Coats"