domingo, julio 23, 2006

"Lunar" de José Luís Peixoto

O brilho nas pedras do passeio. Pontos de luz tremem sobre a água fina
que a noite, a chuva, deixou sobre as pedras. Eu caminho sobre a organização
das pedras do passeio. Diante de mim, um manto de pontos de luz que se
acendem e que se apagam. A sua vida é breve. A minha vida é breve. São
pontos de luz que abrem caminhos para que avance. As minhas botas pousam
entre esses pontos de luz a nascerem, a viverem durante um instante e a
morrerem para sempre. Mil pontos de luz a morrerem em instantes
diferentes, em sítios diferentes, ignorando-se e fazendo parte da mesma
ordem. Pelos muros do jardim, escorre uma camada fina de água, pele
cristalina de cálice, água límpida como veneno. A repousar no topo do muro,
a escorrer como uma avalanche suspensa, há plantas, folhas, ramos de árvores:
braços verdes que pararam no momento em que se lançavam para agarrar
alguém que, como eu, caminhava no passeio. Também na pele vertical do
muro, também nas folhas, há pontos de luz que existem delicadamente.
Como em olhos sinceros a brilhar. Mãos cheias de pó a brilhar lançadas sobre
as pedras do passeio, sobre o muro do jardim e sobre os ramos que se atiram
do seu topo.
Uma brisa ergue-se do interior da terra e chega a mim, à consciência de
mim: o meu rosto, os meus lábios, o meu corpo tocado por essa brisa.
Caminho por entre essa brisa a passar por mim, como se atravessasse uma
multidão invisível. A brisa, ao tocar os meus olhos, transforma-se em
lágrimas que descem frias pelo meu rosto. Os meus lábios. Sinto-as e sinto a
memória das vezes que chorei o desespero parado, mais triste, de lágrimas
que descem lentamente pelo rosto. O tempo passa por mim como qualquer
coisa que passa por mim sem que a consiga imaginar e as lágrimas, que eram
apenas a brisa a tocar os meus olhos, começam a ser lágrimas de desespero
verdadeiro. Páro no passeio. O mundo pára. E lembro-me de ti como uma
faca, uma faca profunda, a lâmina infinita de uma faca espetada infinitamente
em mim. Não passou muito tempo desde que a manhã nasceu. Passou muito
tempo desde que me deixaste sozinho entre as sombras que se confundiam
com a noite. Noutras noites, olhámos para a lua. Nesta noite, não olhámos
para a lua. Noutras noites, olhámos para a lua e enchemo-nos de desejos.
Nesta noite, não olhámos para a lua e sofremos. Noutras noites, olhámos
para a lua e não sabíamos o que era sofrer. Escuridão e esperança. Na lua,
víamos mais do que o reflexo daquilo que queríamos inventar: os nossos
sonhos. Víamos um futuro que era maior do que os nossos sonhos e que nos
envolvia e que nos puxava para dentro de si. Nós sabíamos que nos esperava
algo muito maior do que aquilo com que podíamos sonhar. Estávamos
enganados. Aqui, sobre estas pedras que brilham, sob estas lágrimas no meu
rosto, sei que nos enganámos e sei a lâmina infinita de uma faca.
Lá no sul, onde nasci: o meu corpo dentro do corpo da minha mãe, sob
a sua pele, encostado aos seus ossos; lá no sul, existem casas caiadas, existem
campos, existem planícies que estão agora tão longe de mim e que, ao mesmo
tempo, estão aqui porque são a memória de algo que sei que existe. Dentro
dessa memória, na primeira vez que a lua se encheu e brilhou perfeita depois
de eu nascer, a minha mãe esperou o momento em que todas as pessoas da
casa adormeceram. Pousou sobre a mesa da cozinha o xaile com que me
envolvia e abriu portas até descer os degraus do quintal. Tinha os pés
descalços sobre a terra. Eram os últimos dias do verão. No centro do céu da
noite, a lua tinha parado na explosão da sua luz branca e gelada. Os dedos da
minha mãe eram grossos no momento em que, com ambas as mãos me
levantou no ar, sobre a sua cabeça, na direcção da lua e disse: Ò lua, ò luar,/ eu
fi-lo nascer/ ajuda-mo tu a criar. Eu era pequeno e branco. Nos olhos da
minha mãe via-se os seus braços erguidos, via-se o meu corpo dentro do
círculo branco da lua.
Nesta noite, antes e depois de nos separarmos, era essa mesma lua que
existia no céu. Como a minha mãe, essa lua existia num lugar onde não a
tentámos ver, mas sei agora que existia e saber isso é saber que o mundo é tão
vasto. Agora, neste momento, não sei onde estás. Imagino-te a fazer tantas
coisas. Imagino-te a não te lembrares de mim. Agora, longe daqui, existe a
terra do sul onde nasci. Estou parado e sei que vou recomeçar a caminhar.
Não passou muito tempo desde que a manhã nasceu. Olho para as minhas
botas e vejo uma altura de nevoeiro que começa a levantar-se do chão e a
envolver-me lentamente os joelhos. Os pontos de luz que brilham no chão
são mais vagos. E uma voz terrível e negra começa a atravessar-me. Não
distingo as palavras que diz através de mim. Lentamente, levanto o olhar ao
céu. Sobre mim, existe um lugar infinito e maior do que eu. Sobre mim, o céu
desta manhã é o espaço infinito onde pode existir tudo aquilo que existe no
meu peito. Como a sombra pálida do meu coração, distingo no céu desta
manhã, no céu luminoso e baço do meu peito, a forma branca da lua. O dia
nasceu sobre a noite e a noite continuou sob a luz cinzenta desta manhã. A
noite feita com formas de fumo e de nevoeiro. Quando ainda era mesmo de
noite e estavas ao meu lado, disseste: não podemos ser felizes. Eu desejava-te
tanto. Eu via os teus olhos através do ar da noite, sabia que estavas a meu lado
e sabia que nos íamos separar. Vi-te partir. Os teus passos a afastarem-te de
mim. Eu estava parado perante o horror, o medo. Tu afastavas-te de mim.
Entravas em casa, como se saísses para sempre de mim. Saías para sempre de
mim. O momento em que fechaste a porta: eu soterrado por todo o negro,
todo o veneno negro. Uma faca infinita. Eu a perceber que ficarás para
sempre fechada dentro dessa casa. Nunca, nunca mais poderás sair. A noite, a
rodear-me, era o lugar negro onde existiam certezas terríveis: a morte, a
morte de tudo. Entre as paredes das casas, a tua casa. Os vidros das tuas
janelas fechadas refectiam a escuridão do mundo. Os meus olhos
derramavam escuridão sobre o mundo. Estavas ainda perto de mim, olhava
para o lugar onde sabia que estavas, a casa que te continha e, no entanto,
aquela casa era um lugar escuro, um poço, era como se tivesses mergulhado
dentro da imensidão negra que existe dentro de cada um de nós. Eu sabia que
nunca mais te voltaria a ver. Eu desejava-te ainda. Agora, desejo-te ainda. Sei
que existem cemitérios. Sei que a casa onde estás, o lugar onde te imagino a
fazer tantas coisas, a não te lembrares de mim, é um lugar de destroços.
Vivemos rodeados de cemitérios. Aquilo que fomos está enterrado à nossa
volta e nunca poderemos saber onde deixámos tudo aquilo que não
voltaremos a ver. No céu, a lua é a mesma que existia quando, deixando-te,
caminhei pelas ruas desertas. Os meus passos na noite. Os meus passos e,
lentamente, o dia a nascer sobre as coisas da noite. Lentamente, a noite fixa
no seu lugar, nos objectos, nas casas, no céu, e o dia a envolvê-la como uma
capa de luz cinzenta. Esta manhã lunar. Esta manhã que é uma manhã e que é
ainda a noite. A lua neste céu branco. Pouso as pálpebras sobre os olhos.
Vapor, nevoeiro. Os teus olhos eram um caminho. Os teus cabelos eram
talvez um horizonte. Não sei como acreditámos que as palavras eram simples.
Sonhávamos e enganámo-nos. Sorrindo, mergulhávamos os lábios no veneno
quando pensámos que bebíamos o antídoto.
Abro os olhos e a manhã é igual. O nevoeiro fresco na minha pele. No
céu, esta lua branca e gelada: padrões de gelo, formas moldadas de gelo. No
céu, a imagem da eternidade. Desço o olhar e, à minha frente, as casas
fechadas, as ruas desertas e reais. Existe qualquer coisa fria na realidade desta
manhã. A cobrir as minhas pernas, o nevoeiro. A atravessar-me, uma voz.
Distingo as palavras que diz através de mim: não podemos ser felizes. Sou
atravessado por essas palavras como sou atravessado pelo nevoeiro.
Recomeço a caminhar. Os meus passos são eu e eu sou esta manhã lunar.
Caminho como se estivesse a ser, de novo, oferecido à lua pelos braços da
minha mãe. Quando era criança, temia a morte. Agora, envelheço tanto.
Temo a morte mas sei que, se tentar fugir-lhe, estarei a correr na sua
direcção. Caminho sobre as pedras do passeio. Ouço os meus passos debaixo
do nevoeiro. Fujo da morte porque quero correr na sua direcção.
A memória como uma maldição. Caímos na eternidade e a memória é
um peso, continua a prender-nos em qualquer ponto para onde nunca
poderemos voltar. Ò lua, ò luar,/ eu fi-lo nascer/ ajuda-mo tu a criar. A
memória é como a esperança da minha mãe na noite em que me ergueu à lua
e, sem saber, escolheu-me um destino. Lembro-me de quando nos
conhecemos e esse dia está debaixo do teu olhar e desta noite. Lembro-me da
minha mão pousada sobre a tua e esse instante está debaixo da palavra
solidão. Lembro-me de tantas coisas impossíveis. Agora, caminho por esta
manhã deserta. As pedras do passeio existem debaixo dos meus passos.
Ninguém, nem sequer eu próprio, me pergunta para onde vou. Nas ruas
desertas, sou uma multidão de gente mutilada a caminhar. Sou aquele que,
esta noite, te viu partir, que olhou para ti quando os teus olhos se despediram
e que não pôde fazer nada senão olhar para ti, o corpo que foi meu, e vê-lo
afastar-se, cada vez mais longe dos meus braços. Sou aquele que nasceu lá no
sul, longe de toda as desilusões, no lugar onde o passado pára, no último lugar
do passado. Sou aquele que sonhou com tudo aquilo que é proibido sonhar.
Sou aquele que é todos estes e muito mais do que estes e que caminha por um
passeio deserto, o nevoeiro, o brilho morrente da luz na água fina da chuva,
sob um céu cinzento, sob a lua como um ponto para onde tudo se dirige.
Caminho nesta manhã como se entrasse dentro de uma casa vazia, a casa que
conheci, que foi minha e que abandonei, como se subisse as escadas dessa casa
de salas mortas, cadeiras mortas, camas mortas, como se me aproximasse da
janela e olhasse lá para fora, como se uma voz negra e terrível me atravessasse.
A manhã é ainda lunar.
Nunca mais poderei deixar o meu corpo esquecido junto ao teu. O
mundo que não existia longe da tua pele. Os meus dedos a deslizarem pela
superfície da tua pele. E o desejo enganava-nos. Os meus dedos entre os teus
cabelos e a inocência. A claridade dos dias que nasciam na tua pele branca, na
forma suave da tua pele feita de silêncio. A inocência repetida em cada
palavra da tua voz, como água de uma fonte, como a minha mão a atravessar o
ar e a dirigir-se para o teu rosto. O teu olhar era a inocência. O meu olhar. E
o silêncio de cada vez que queríamos falar de assuntos mais impossíveis do
que a memória. Nunca mais poderei sonhar porque tu não estarás ao meu
lado e, descobri hoje, só posso sonhar contigo ao meu lado. Espetada
infinitamente em mim, uma faca infinita. Deixei de imaginar o futuro. Sobre
esse tempo que não sei se chegará existe um manto muito mais negro do que
aquele que cobre o passado. Não consigo olhar através desse tempo negro. O
futuro estará depois de muitas noites, mas eu deixei de imaginar as noites. Sei
que, da mesma maneira que esta noite se cobriu de manhã, esta manhã
poderá anoitecer. Consigo imaginar cada tom das suas cores a tornarem-se
negras. Não consigo imaginar este tempo a transformar-se noutro tempo.
Contigo, perdi tudo o que fui para não ser mais nada. Deixei-me ficar nos
sonhos que tivémos. Abandonei-me. Nunca mais entenderemos a lua como
quando acreditávamos que aquela luz que atravessava a noite nos aquecia.
Nunca mais. Nunca mais poderemos sonhar. Nunca mais.
O brilho nas pedras do passeio. Dentro do nevoeiro, há pontos de luz
mais grossos a brilharem. Moedas lançadas para um lago cheio de desejos.
Caminho entre o brilho. Os meus passos afastam-me de nada. Existem veios
de medo na brisa que atravesso. Linhas de medo que me tocam a pele.
Atravesso a brisa e sou atravessado por uma voz que me diz: não podemos ser
felizes. O medo. Sobre mim, o céu é o tempo do mundo. Todo o tempo de
todas as pessoas do mundo. O céu é nunca mais. A lua somos nós, aquilo que
fomos. Como a memória, a lua existe nesta manhã para nos lembrar que
existiram noites, que existiu esta noite em que nos separámos. Caminho
sobre a organização das pedras do passeio, a organização do nevoeiro.
Rodeada pelo tempo do mundo, por nunca mais, a lua somos nós.


José Luís Peixoto ( Ponte de Sor, 1974)

1 comentario:

José Ángel García Caballero dijo...

ya sabes lo que pienso de este cuetno...
la luna también es una actitud, la de encontrar en la noche aquello que no es noche...
un beso fuerte